Édipo Rei — A vaidade da felicidade introvertida

Felipe Marques
4 min readAug 22, 2021

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Representação de Édipo e sua filha, Antígona

Muitas reflexões brotam da leitura de Édipo Rei. O papel da religião grega como comprobação cívica, o valor da pólis para os gregos, a relação de filhos com os pais de sexo oposto, como destacou Freud, e o legalismo como pano de fundo para aplacar a condenação que sentiam carregar são alguns dentre os muitos assuntos presentes na tragédia. Contudo, a vaidade da felicidade chama atenção.

Será que a felicidade é possível para aqueles que vivem olhando apenas para si? Para aqueles que, a fim de encontrar a fonte da alegria, buscam isso em sua própria história, comportamentos e sentimentos?

Individualismo expressivo

Robert Bellah, importante sociólogo norte-americano, identificou que a pessoa da modernidade

“tem um núcleo exclusivo de sentimentos e intuições que deve ser desdobrado ou expresso, caso se pretenda que a individualidade seja concretizada”. (Habits of the heart, p.333–4)

O ser humano da modernidade é empurrado para dentro de si mesmo a fim de construir sua própria cadeia de sentido, valores e propósitos. Foi o que o filósofo canadense Charles Taylor chamou de “eu encapsulado”. Sobre o eu encapsulado, ele observou:

“Meus propósitos supremos são aqueles que brotam dentro de mim, o sentido crucial das coisas é aquele definido em minhas reações a ela”. (Uma era secular)

Para aqueles mais ambientados com teologia, filosofia e história, não há como deixar de perceber o forte traço do existencialismo de Sartre e companhia no sentimento cultural. Há muito tempo o existencialismo deixou de ser uma filosofia de gabinete e se tornou o espírito de uma época desiludida com a possibilidade de se construir qualquer teia de sentido interior. Essa situação se contrapõe à identidade no contexto de Édipo, que seria chamado de “eu poroso” por Taylor.

Segundo Taylor, culturas mais antigas entendiam que o sentido e o propósito da vida estavam conectados a realidades cósmicas, espirituais e comunitárias. Tudo isso pode ser identificado na narrativa de Sófocles, onde Édipo faz uma avaliação de sua própria vida tendo como parâmetro uma realidade universal objetiva, a vontade dos deuses e os laços com a pólis grega.

Tim Keller, importante teólogo norte-americano, comentando sobre a identidade moderna, ressaltou que

“o secularismo moderno ensina que somente podemos nos desenvolver olhando para dentro de nós mesmos, desvinculando-nos e abandonando casa, comunidades religiosas e todas as demais exigências, a fim de podermos fazer nossas próprias escolhas e determinar quem somos por nós mesmos”. (Deus na era secular, p.158).

Quem nunca viu um jovem secular dizer que é preciso olhar para dentro de você mesmo para descobrir quem você é. Poderíamos ainda abordar a forte narrativa moderna de liberdade de qualquer raiz ou comunidade. Muitos adolescentes desejam mergulhar na grandes metrópoles, pois assim, alegam eles, estarão livres das fofocas, pressões e expectativas externas.

Toda essa narrativa, contudo, é ilusória. Em primeiro lugar, não conseguimos construir nosso eu do zero. Estamos intimamente ligados à realidade externa e objetiva, de maneira que a construção interna de significados distintos apenas confunde o sentido do que está lá. Neste sentido, é melhor buscar a conformação do que tentar levantar o edifício da própria identidade. Algo que a teoria queer, com sua abordagem pós-identitária, simplesmente não quer aceitar.

Em segundo lugar, nossos desejos internos são, na maioria das vezes, conflitantes. Apenas jovens iludidos acreditam que, se olharem com carinho, encontrarão o destino seguindo os rumos do próprio coração.

A situação de Édipo

A tragédia de Sófocles, todavia, não está situada no mesmo contexto que o nosso. Édipo olhava para fora, nós olhamos para dentro.

Em uma cultura onde a pólis e os deuses ocupavam a preocupação central, a reputação e o respeito exerceram enorme pressão sobre Édipo. Isso não mudou, mas em um contexto individualista como o nosso, temos o agravante da introversão. Precisamos construir quem somos, identificar se nascemos com o mesmo sexo e gênero, encontrar nossa essência, definir nossos propósitos em total desprendimento social e familiar, alcançar nossos sonhos e, depois disso tudo, provar felicidade pessoal e plenitude existencial.

Poderia Édipo, mesmo sem qualquer reprovação externa, viver uma vida feliz diante dos infortúnios ao olhar para si mesmo? Acredito que não. Talvez um dos grandes empecilhos à felicidade em nossos dias seja que, tentando responder a uma sociedade coletivista, busquemos em nós o que não podemos oferecer.

Talvez apenas uma resposta estará em nossos lábios se buscarmos refúgio na pólis ou em nós mesmos: “Que podia eu ainda ver, cuja visão tivesse uma doçura para mim?”.

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Felipe Marques

Escrevo sobre teologia, história e mundo contemporâneo.